Recordar os anos da minha juventude na União Soviética no
início do Século Vinte traz de volta lembranças esparsas e imagens complicadas.
Dentre elas, porém, há alguns quadros completos que estão gravados
profundamente em minha mente.
Lembro-me daquela longa noite fria, quando acordei com o som
de soluços. Mamãe estava de pé, chorando histericamente, enquanto abanava as
mãos no ar. Papai estava de pé, meio vestido, completamente apavorado.
Três jovens vestidos em uniforme estavam andando pelo
quarto, examinando os armários e as camas, olhando para as paredes. Vi quando
se aproximaram da estante e examinaram cada livro, página por página.
Perguntei-me: O que estão procurando? O que estão
procurando? O que eles querem? Vão se sentar e estudar nos livros como fazem
mamãe e papai?
E então vi que tinham encontrado aquilo que estavam
procurando. Acharam alguns pedaços de papel escritos à mão e uma foto do Rebe
de Lubavitch [Rabi Yosef Yitschak Schneersohn, o sexto Rebe – N.E.].
Um apontou para o outro: “Está vendo? Este é Schneersohn!”
Ordenaram então que Papai se vestisse e os acompanhasse.
Papai aproximou-se da minha cama, inclinou-se e deu-me um beijo longo, triste.
Lágrimas – lágrimas quentes, escaldantes, rolaram pelo seu rosto e caíram na
minha testa. Ele então olhou ardentemente para mamãe, com amor nos olhos.
Beijou a mezuzá sobre o batente e desapareceu na noite escura.
Somente quando a porta se fechou foi que a minha mente
infantil entendeu o quanto era grande a nossa tragédia.
Ela desmaiou. Os vizinhos vieram e a reanimaram. Tentaram
consolá-la.
Quando raiou a manhã, ela atirou uma écharpe sobre os ombros
e saiu correndo. Voltou mais tarde, desapontada, exausta, melancólica e
alquebrada. Alimentou-me e caiu num sono exausto.
Certa vez escutei Mamãe dizer aos vizinhos que naquela noite
“eles” também levaram outros cinquenta homens casados e vários estudantes,
todos eles chassidim de Lubavitch, amigos e alunos de papai. Fora uma tragédia
comunitária, mas aquilo não diminuiu o sofrimento de mamãe.
Agora, dia após dia, ela saía para correr pelas ruas. Ia a
todos os lugares para implorar, protestar e chorar, enquanto eu era deixado
sozinho em casa, como um órfão.
Com pena, os vizinhos vinham para acender o fogão e aquecer
nossa casa, e traziam-me alguma coisa para comer. Eu me sentava à janela e
esperava durante horas. Talvez mamãe esteja chegando? Talvez Papai esteja
vindo?
Minha jovem alma estava ansiosa. Eu procurava segurar as
lágrimas.
“Se eu pudesse, injetaria a Torá inteira em seu cérebro;
quem sabe o que o amanhã vai trazer?” Eu me sentia como se um ladrão tivesse
roubado, sem misericórdia, a beleza da vida. Ele roubara meu sorriso, minha
felicidade, minha infância.
Fora há apenas alguns dias que papai passava os dias comigo,
brincando e cantando. Ele corria para mim, dava-me um abraço e me beijava
tanto.
Ele me contava histórias. Histórias extraordinárias da Torá
e do Talmud.
Eu já estava estudando a Torá com comentários de Rashi.
Porém Papai insistia em ensinar-me conceitos elevados que eu não entendia por
completo. Ele falava sobre D’us, sobre os judeus e sobre a Torá.
Mamãe costumava dizer a Papai: “Gevald, o que está fazendo?
Um menino tão pequeno como o nosso Sholomke, você fala sobre esses assuntos? A
mente dele ainda é tenra, não pode entender essas coisas.”
“Se eu pudesse,” dizia papai, “injetaria a Torá inteira no
cérebro dele; quem sabe o que o amanhã pode trazer?”
Eu fora informado que originalmente papai tinha sido rabino
numa cidade vizinha, até ser forçado pelas autoridades soviéticas a deixar o
trabalho e fugir. Ele então aprendeu a ser um sapateiro.
Lembro-me que um dia uma mulher entrou em casa: “Oy, onde
está o rabino? Tenho uma pergunta importante a fazer!”
Mamãe respondeu iradamente que ali não havia nenhum rabino.
“Já lhe disse milhares de vezes: não há rabinos nesta casa! Tenha pena de nós,
e pare de vir aqui!”
O que eu não entendia naquela época era como ser rabino
podia ser mais depreciativo que ser sapateiro. Lembro-me que papai saía nas
noites frias de inverno e desaparecia durante algumas horas. Voltava muito
cansado, mas sempre com o espírito alegre.
Todos eles tinham o mesmo olhar no rosto. Os olhos sempre
com medo. Medo do desconhecido. Um dia ele me levou junto. Viajamos numa
carroça e depois a pé. Caminhamos através de ruas estreitas até chegarmos a um
bloco de apartamentos. Passamos por um pátio descuidado e através de três
entradas, e então subimos as escadas até o quinto andar. Entramos numa sala
grande com má iluminação e uma grande mesa descoberta ao centro. Na sala havia
doze adolescentes. Todos tinham o mesmo olhar no rosto. Os olhos demonstrando
medo. Todos temiam o desconhecido.
Eram amigáveis uns com os outros, como se todos fizessem
parte de uma grande família.
Quando me viram, exclamaram empolgados: “Sholomke está
aqui!”
“Seu pai diz que você tem uma boa cabeça.” disse um deles.
Outro disse: “Não se preocupe, Sholomke, não deixe seu
espírito se abater. Quando você crescer, o mundo estará normal outra vez.”
Todos tiraram os seus livros. Estudaram filosofia de Chabad,
enquanto eu ficava ali sentando, perguntando-me o que não estava normal no
mundo atual.
Passaram-se as horas. Os estudantes entraram em discussões
acaloradas enquanto examinavam as minúcias dos ensinamentos. Então, um a um,
eles foram saindo, com intervalos de alguns minutos.
Tudo a respeito daquela noite me fascinou.
O segredo e o local escondido onde os rapazes se reuniram. A
pobreza da casa. A amizade que tinham um pelo outro. Sua confiança, apesar do
medo.
Vê-los estudar teve um grande efeito sobre mim. Seu estudo
era repleto de entusiasmo, havia amor de meu pai por eles e deles por papai.
Após aquele dia, jamais os vi novamente, porque pouco depois
meu pai foi levado.
Tio Moshe sem Filhos
Após conversarem com mamãe durante algum tempo, eles
decidiram que eu deveria ir morar com Tio Moshê. Alguns meses depois que papai
foi levado, o marido de sua irmã, Tio Moshê, veio à cidade. Era um homem alto e
magro, e embora idoso, bastante forte. Podia-se sentir confiança e certeza em
seus passos.
Após conversar com Mamãe durante algum tempo, eles decidiram
que eu deveria ir morar com Tio Moshê na cidade dele. A despedida foi de partir
o coração. Nós três choramos. Depois que titio enxugou os olhos, eu comecei a
soluçar; “mamãe, não quero ir, quero morar com a senhora.”
“Meu filho, que espécie de vida você terá aqui? Quem vai
estudar com você aqui? Logo, com a ajuda de D’us, papai voltará para casa, e
você poderá ter novamente uma vida normal.”
Abraçamo-nos e nos beijamos mais uma vez.
Mamãe nos acompanhou até o trem. Ali, embarcamos numa
pequena cabine. Fiquei olhando mamãe ali de fora, assistindo nossa partida.
Suas mãos estavam abertas. O olhar em seu rosto expressava sentimentos não
incontidos: “O que eu fiz? Meu bem mais precioso… meu único consolo… Eu o
mandei para o desconhecido.”
A vida com minha tia e meu tio não era ruim. Titio era
carpinteiro e ganhava bem. Eles não tinham filhos. Fui mandado para estudar sob
a supervisão do melamed, professor, Asher. Tio Moshê disse ao professor;
“Lembre-se que ele não é apenas mais um aluno; é filho de Shmuel, seu amigo de
infância, que ele possa voltar logo. E quando ele vir que seu filhos está sendo
educado nos caminhos da Torá, sua felicidade não terá limites.”
A Yeshivá
Como alunos de uma escola judaica subterrânea sob o governo
soviético, éramos forçados a mudar de local a cada poucos dias. Nosso professor
nunca conseguia dar uma série inteira de palestras no mesmo local. Certa vez,
titio me disse: “Creio que é uma boa ideia você estudar numa yeshivá, um local
de estudo avançado de Torá. Aqui você não tem amigos. Lá poderá arranjá-los.”
Pouco depois, levou-me para a escola. Ali havia trinta
alunos bem jovens e alguns um pouco mais velhos. O professor era um grande
erudito. Estudávamos e viajávamos, viajávamos e estudávamos. Apesar disso, sob
aquelas difíceis circunstâncias, todos adquirimos grande conhecimento
talmúdico.
Também aprendemos Chassidut, que revelou uma nova dimensão
para a vida. Reconhecemos um novo mundo, Divino e esplêndido. Passamos a ver a
realidade de outra maneira. Nosso sede de conhecimentos era grande; não era
preciso nos forçar a estudar; sempre queríamos mais e mais.
Desde que meu pai foi levado, eles passaram a me chamar de
“órfão vivo”. Quando criança, eu não entendia – não havia outros órfãos vivos?
Hoje eu entendo: sou de fato um órfão singular. Nem mesmo
recitar a prece do Kadish, abrir minha alma, eu não posso. Porém eu sei que há
algo mais profundo que me conecta ao meu pai. Há algo muito maior que qualquer
carta ou telefonema poderia fazer. Há uma conexão de almas.
É a prática judaica que tento manter que nos conecta.
Relato publicado no Chabad.Org
Baseado num relato feito a Avraham Elya Plotkin, que o registrou em Yiddishe Heim (Publicações Kehot), após sua fuga da União Soviética em 1946.
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