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domingo, outubro 30

O Homem Da Mezuzá


Monte Belo é um bairro muito próximo do meu.  Eles separam-se tão somente pelas ruas quase planas do bairro do Castelo Branco, esse, um logradouro ladeado pelos verdes infinitos do Parque da Cidade que nessa estação se enfeita de roxos, amarelos e brancos dos ipês floridos. Porém, algo bem maior distancia Monte Belo do meu bairro. O meu é um bairro de prisioneiros, de gente que se cerca de muros altos, grades pontiagudas e guaritas em cada esquina. Monte Belo por sua vez, é aberto. As casas se abrem para ruas com muita gente, avôs e avós sentados em baixo das sombras das arvores e gritos de crianças pulando as calçadas irregulares. Algumas ruas, com jardineiras floridas e sacadas debruçadas para o movimento. É um bairro sinuoso, ondulado e dramático. A pobreza não se revela. Ela é afastada das principais vias, espalha-se secretamente em estreitas ruas, nos sopés dos morros, atrás dos prédios comerciais da movimentada Rua do Comércio. Ali se vive em ruas estreitas de portas que dão para outras portas, de casas e sobrados que multiplicam-se em labirintos quase sem fim. É como se uma casbá fosse.

Durante algum tempo o Monte Belo esteve no caminho diário que fazia para ir à  universidade. Conhecia pouco da geografia da cidade e repetia sempre o trajeto ensinado por um amigo. Seguia rigidamente as suas recomendações e não parava no bairro por nada nesse mundo, não levava comigo dinheiro ou qualquer pertence além de livros e a bicicleta que me servia de transporte. Cruzava o bairro como uma flecha de tão concentrado no medo imposto pelas informações do perigo eminente em cada esquina. Assim, todo e qualquer detalhe misturava-se ao colorido pastoso da minha visão periférica. Nunca fixei nada além do escuro asfalto das duas ruas principais.

O tempo passou. Pessoas novas conheci. Dentre elas um morador do Monte Belo, que passou a acompanhar-me nas idas de bicicleta à universidade. Galego, apelido comum a qualquer loiro nascido nessas terras do norte, esperava-me nas proximidades da pequena capela de Fátima e dali seguíamos pedalando lado a lado. Não mais pela Rua do Comércio e seu trânsito pesado, cheio de ônibus e pedestres invadindo o asfalto. Pedalava nas muitas ruas que se espalham pelo bairro como as linhas nem sempre retas. A companhia de um morador local me fez abrir os olhos e descobrir detalhes incríveis de uma zona que a cidade teima em querer cobrir. Também pude ver que no bairro não havia perigo algum, apenas o medo de quem desconhece. Passei a indagar sobre muito do que via e o novo amigo surpreso pelo meu interesse desandava a descrever detalhes, histórias e até segredos vindos daquelas ruas quase esquecidas no tempo.

Um dia uma daquelas chuvas de novembro desabou nas primeiras horas da manhã. Uma chuva que chega sem nenhum aviso e nos pega de surpresa. Na ânsia de fugir da água que caia dura e volumosa, desci da bicicleta e abriguei-me em baixo de uma sacada, espremendo-me entre a chuva e uma parede na tentativa de manter-me seco. Observei que o Galego procurara abrigo em sentido contrario ao meu e acenava-me efusivamente, chamando-me para ir para a sua direção. Não cedi um milímetro e ali permaneci pelos quase quinze minutos de chuva que transformaram as ruas mais baixas em pequenos córregos. Ao abrir o sol voltamos ao caminho.

“Não me viu chamá-lo?” Indagou-me o amigo em tom claro de repreensão.
“Sim, mas não ia entrar naquela água toda. Depois, eu não me molhei mais que tu!”

Então revelou-me que a preocupação não era somente com a chuva e sim com o local onde me abrigara. Contou-me que a propriedade onde me recostara pertencia a um homem velho, estranho e rabugento, famoso por expulsar as pessoas que se apoiavam nas paredes do seu imóvel com palavras duras e muitas vezes em uma língua estranha.  As mães alertavam aos filhos para manterem-se afastados da casa do “feiticeiro” e até mesmo os vagabundos evitavam transitar na estreita calçada de cimento que separava a casa do leito da rua. Sorri e brinquei dizendo-lhe da sorte daqueles que desconhecem os perigos. Seguimos.

Muitos dias se passaram até que a tal casa voltasse a me chamar a atenção. 

Era uma tarde de sexta-feira, dessas em que o sol derrama um amarelo intenso nas paredes e o ar parece tomado por uma névoa dourada. Seguíamos pela Rua das Esmeraldas quando algo atravessou o meu caminho e danificou a roda traseira da bicicleta fazendo com que eu parasse bruscamente. Quase fui ao chão.  O Galego então me tranqüilizou, havia nas proximidades uma pequena borracharia e para lá seguimos empurrando as bicicletas. Para a minha surpresa a estreita e confusa oficina ficava quase em frente ao sobrado onde me abrigara da chuva. Enquanto reparavam o meu veículo observei que ao contrario das casas vizinhas, aquela era muito bem cuidada. Paredes em um tom creme pálido quase branco, com portas e janelas limpas e que estavam fechadas. Havia um gradil a circundar a sacada de onde surgiam muitas plantas, todas verdes e algumas em flor. Uma casa que destacava-se em meio à vizinhança que surgia surrada pelas intempéries. Na rua, as pessoas olhavam firmemente para cima antes de passarem pela calçada, num gesto de precaução e medo. O homem devia ser mesmo um perigo, pensei.

Não demorou muito e o meu amigo me segura o braço apertando-o, olho para ele e observo que com a ponta do queixo me aponta um homem que surgia na sacada.  “É ele!” disse-me quase sussurrando.  Pus-me a observá-lo. Deu alguns passos e apoiou-se no gradil olhando no horizonte o final da tarde que se aproximava e o passar das pessoas na rua. Depois, enquanto acariciava a barba, voltou-se em nossa direção, tentei desviar o olhar, mas era tarde, ele percebera que o fitava. Encarou-me por um tempo e voltou a desaparecer. Voltei-me então à minha bicicleta e depois de largo tempo, recebo a notícia de que já estava reparada. Paguei, peguei a magrela e fui para a rua. Nesse momento o homem misterioso volta a aparecer. Voltei a observa-lo de soslaio, fazendo hora numa estranha curiosidade. Abriu a porta e por um instante parou, parecia concentrado e numa distante reflexão. Não era um velho, como me dissera o Galego quando falou-me dele. Era moço, não mais de quarenta anos. Magro e alto, muito elegante em suas vestes negras. Deu um passo, passou a mão no umbral da porta e beijou. Eu me peguei sorrindo e o galego me olhava sem nada entender. Estiquei o corpo a fim de tirar a dúvida. Sim! Uma mezuzá!  

Permaneci parado enquanto ele caminhava lentamente em direção à Rua do Comércio, passando a poucos metros de onde estávamos e cruzou à minha frente fitando-me seriamente. Até pensei em ter um ataque de atrevimento e desejar-lhe “Shabat Shalom!”, mas acabei inclinando a cabeça e deixando escapar um “Bom tarde, senhor” esboçei um sorriso. Ele deve ter achado estranhíssimo, mesmo assim respondeu-me com uma voz de trovão: “Boa tarde!” e continuou o seu caminho. Tomei o rumo da minha casa, sendo bombardeado por perguntas do Galego. Muitas ficaram sem respostas, uma promessa de "Depois explico", tudo justificado por não querer chegar em casa antes do por do sol. 

O tempo passou e ao “Boa tarde!” inicial juntaram-se muitos “Bom dia!” e  outros raros ”Boa noite!”. À distância surgiram acenos e volta e meia sorrisos, mas nunca uma frase. Nunca soube o seu nome ou o que fazia ali, no entanto se tornou quase que um simpático conhecido. Algo muito distante das imagens de um feiticeiro que o meu amigo dissera ser chamado.

Muito recentemente voltei a circular naquela zona do bairro e pude ver que a casa não era mais a mesma e que a mezuzá ali já não mais estava. Senti uma certa tristeza.

Fotos - Judiarias em Portugal: Guarda (Glória Shizaka) e  Trancoso (VRFotos)
           Judiaria na Colombia: Medelin-Wikipedia Commons
Mezuzá: Wikipedia Commons

4 comentários:

Hugo Gutierrez disse...

Oi Leco,
Só para ajudar a identificar, gostaria de saber quais são as judiarias de Portugal e qual é a da Colombia.

Do bairro: acho que o que se passa om o bairro do Monte Belo é o que acontece muito em outras cidade do Brasil. As pessoas dão mais importância ao moderno. Nos foruns de cidades é muito comum os threads de skylines cheios de prédios modernos fazerem mais sucesso que os threads de cidades históricas ou de bairros horizontais.

Esther disse...

A melhor coisa, além de saber que voltou a escrever, é tomar conhecimento de suas aventuras.

Não me contou que passou meses circulando pelo bairro que o Hélio disse que era perigoso e recomendou que não passasse por lá. Vou contar para a sua mãe. Merece uns puxões de orelhas!

:)

Brincadeira. Beijos querido.

Leco disse...

Ok Hugo. Vamos lá:

A primeira foto, de casas com canteiros floridos é a Rua da Alegria, em Trancoso - Portugal. A segundafoto é a Judiaria de Medelim - Colombia (infelizmente não sei precisar o nome dessa rua) e a terceira é a Rua da Trindade em Guarda - Portugal.

Quando ao abandono dos bairros mais antigons razão. No SSC até me espanto quando dizem que um skyline X é perfeito por ter dezenas de espigões...

Leco disse...

Que surpresa, Vó Esther!

Coisa boa te ler e saber que monitora-me! :) Precisamos falar mais vezes...
Te adoro.